A História encarregar-se-á de sublinhar o falhanço monumental da primeira Administração Bush (2000-2004), que começou verdadeiramente a partir do 11 de Setembro de 2001, e o significado especial que teve a ascenção do neoconservadorismo nos círculos do poder norte-americano.
Em Janeiro de 2002, George W. Bush definiu como grande ameaça à segurança dos EUA (e, por conseguinte, do “mundo livre”) um “Eixo do Mal” constituído pelo Iraque, pelo Irão e pela Coreia do Norte (por esta ordem), como regimes que apoiam e financiam o terrorismo e procuram armas de destruição maciça. Este discurso entrou para o anedotário e Bush foi pela enésima vez chamado de asno. Quase cinco anos depois, os principais problemas dos EUA (e, por conseguinte, do “mundo livre”) são o Iraque, o Irão e a Coreia do Norte. Mas, ao que tudo indica, o governo norte-americano errou de forma trágica: adiou os perigos maiores e entrou a matar com as ameaças menores.
Quem esteve por detrás da decisão de invadir o Iraque, usando o argumento das armas de destruição maciça?
O neoconservadorismo surgiu nos EUA na década de 1960, de intelectuais desiludidos com a extrema-esquerda trotskista, anti-estalinista. Os neoconservadores são, por isso, e como o nome indica, “novos conservadores”, por oposição aos conservadores tradicionais, dos quais é representativa a direita religiosa americana. A grande diferença entre os neoconservadores e a outra direita é que os primeiros são gente com um percurso académico brilhante; são intelectuais, com presença habitual nos centros de pensamento (think tanks), distintos das franjas populistas e ignorantes da outra direita; são internacionalistas, defendem o activismo dos EUA no mundo, dedicam-se sobretudo a pensar a política externa (a direita tradicional é isolacionista). Não obstante, as duas direitas juntaram-se no governo de W. Bush.
Os neoconservadores começaram por ganhar espaço na comunicação social, nos thinks tanks, em inúmeras publicações, jornais e programas de televisão. Nas últimas décadas, têm ocupado lugares importantes na Administração, no Pentágono e nos serviços secretos. Paul Wolfowitz, Donald Rumsfeld, Dick Cheney (governo), Richard Perle (conselheiro), Abram Shulsky (Pentágono), Eliot Abrahms e Stephen Cambone (serviços secretos), Clarence Thomas e Richard Bork (tribunais), William Kristol (fundador do neoconservadorismo americano), William F. Buckley, Robert Kagan, John Bolton e William Bennett são influências decisivas na Casa Branca. Os académicos Francis Fukuyama (“O Fim da História”) e Samuel Huntington (“O Choque de Civilizações”, teorizando um futuro combate entre o Ocidente e o Islão, sistemas antagónicos) são outros neoconservadores muito tidos em conta.
Os neoconservadores herdaram do trotskismo o princípio da exportação da ideologia, neste caso, a democracia americana, entendida como moralmente superior mas permanentemente ameaçada no mundo contemporâneo. Fazem uma crítica cultural e moral às instituições americanas e pretendem recuperar tradições clássicas.
O principal inspirador intelectual do neoconservadorismo norte-americano é um filósofo judeu de nome Leo Strauss, fugido à Alemanha nazi e que se estabeleceu na academia norte-americana a partir da década de 60. Strauss pretendeu, através dos autores clássicos, lutar contra os paradigmas que fazem da sociedade contemporânea uma sociedade nihilista. Tinha um profundo desprezo pelo caos da Alemanha de Weimar, que abriu portas ao nazismo e ao Holocausto, e viu nela um espelho da sociedade americana do pós-II Guerra Mundial, contaminada pelo relativismo e pelo positivismo, onde se tinham perdido os valores da ordem, da moralidade. Deu a receita: para combater a tendência auto-destrutiva da democracia contemporânea, há que recuperar padrões antigos.
Leo Strauss falou do “drama do Ocidente”, de uma civilização que distorceu o seu pensamento metafísico e chegou a um ponto de indefinição existencial. A modernidade, iniciada com Maquiavel, Hobbes e Locke, é produto de uma nova concepção de natureza humana que inevitavelmente desembocou no nihilismo, no humanismo radical ateizante, modificando toda a ideia que temos da existência em comunidade.
Segundo Strauss, a civilização ocidental tem como fontes primordiais dois elementos antagónicos mas factores da vitalidade do Ocidente: a Fé e a Razão, a Bíblia e a Filosofia, Jerusalém e Atenas. Jerusalém (o judaico-cristianismo) é o elemento que representa a moralidade necessária, a ordem, a unidade, a obediência. Atenas representa a Grécia antiga, a racionalidade clássica, uma ordem que reconhece a superioridade intelectual dos sábios e em que a justiça (em Platão, associada à atribuição adequada das funções a cada indivíduo) é a maior virtude. Se é impossível uma harmonização completa entre Jerusalém e Atenas, nem uma nem outra podem ser definitivamente derrotadas, e a sua eterna tensão é fundamental para compreender o Ocidente. Tanto em Jerusalém como em Atenas existe uma consciência semelhante de obrigatoriedade e de obediência. O predomínio de uma tradição sobre a outra resultará na revolta e na violência.
Apesar de ser preferir o espírito crítico ao espírito bíblico, Strauss vê qualquer uma das escolhas, revelação ou razão, como tendo que ser respeitadas. A religião é uma opção que não pode ser refutada. Sendo ele próprio parte de uma comunidade religiosa (apesar de cedo se ter afastado da ortodoxia dos seus familiares), possuía uma forte consciência da sua herança cultural. Refere muitas vezes a religião como factor de coesão, lealdade e sentido moral na comunidade. O ateísmo da modernidade é fruto da pseudo-filosofia que julga que todas as religiões são arbitrárias e que exalta a satisfação dos desejos particulares de cada indivíduo. A religião é a prevenção contra a tendência moderna da perturbação da ordem moral. Começa aqui a componente cínica do straussianismo, pois Strauss foi intimamente ateu e nihilista a vida inteira, como são a maioria dos neoconservadores actuais.
Seja como for, Strauss procura claramente em Atenas a solução para os males da modernidade. A filosofia clássica, sobretudo o platonismo, é o modelo para remediar os excessos e as deficiências do pensamento moderno. A filosofia clássica procura a transcendência enquanto a modernidade baseia-se na imanência. Em Atenas, a noção de Bem traduz-se na vida em comunidade (o homem é um animal social – Aristóteles). Nesta ordem natural, há uma característica hierárquica que deve ser absolutamente respeitada.
Aquilo que Strauss vê em Platão é a verdadeira essência do filósofo, que percebe e defende a causa da filosofia, mas que reconhece que esta pode ser tanto remédio como veneno. Apesar de ser a mais nobre e elevada das diligências (seguida da política), a filosofia constitui uma ameaça permanente para as bases morais e autoritárias da sociedade. O filósofo está acima dos comuns, não vive assaltado pelos mesmos desejos que a grande maioria dos homens. Vive serena e tranquilamente, acima do medo, mas também acima da esperança, situação que provém da sua resignação. O que Platão compreendeu, ao contrário de Sócrates (visto por Strauss como exemplo do perigo da filosofia, por o método socrático consistir no diálogo aberto e interrogativo com os jovens), é que o filósofo deve tomar precauções para impedir que a filosofia agite as fundações da sociedade. Os sábios devem moderar a verdade da comunidade – a exposição da filosofia às massas é um erro trágico.
Leo Strauss não terá sido o primeiro a falar sobre o ensino esotérico, mas é o expoente máximo dessa teoria nos dias de hoje: os filósofos devem recorrer a uma escrita obscura para os textos filosóficos, evitando que as ideias perigosas destruam o equilíbrio da sociedade. Ideias que apenas possam ser entendidas nas entrelinhas pelos sábios ao longo da história. Começa aqui o elitismo do straussianismo: há uma desigualdade erradicável entre os homens, uma hierarquia no topo da qual está um grupo iluminado de pessoas com capacidade para proteger o conhecimento filosófico.
Para Strauss, existe um conjunto de questões fundamentais que ocupam o pensamento dos filósofos, de natureza essencialmente político-teológica. Os filósofos, não pretendendo governar, espera-se que tenham influência determinante junto dos que têm o poder, para que os legisladores tenham uma acção sensata no momento de estabelecer medidas que fortaleçam a sociabilidade dos cidadãos. A difusão da Verdade, da cruel verdade filosófica, seria catastrófica: a de que não existem deuses que castiguem ou recompensem o bem e o mal praticados, que a vida após a morte é uma ficção, que a história da Humanidade não é mais do que uma poeira insignificante do cosmos, que não existem nem Bem nem Mal em si, que a natureza humana é indiferente aos valores e às necessidades humanas. Os filósofos são homens serenos e equilibrados, mais que ateus, são cépticos e epicuristas.
Na governação, é natural e necessário que a verdade seja escondida à grande maioria. Não se trata de manipulação pura e simples, mas sim de evitar, através da noble lie, que o preconceito, a ignorância e a sensibilidade emocional das gentes comuns impeçam a governação política. A dissimulação é necessária em política. Foi com uma noble lie que os EUA avançaram para o Iraque.
Para Strauss, o grande pecado de Maquiavel foi ter revelado a verdade, e aí teve início a modernidade, o antropocentrismo, o humanismo, o individualismo. Maquiavel descreveu os homens como naturalmente egoístas, ambiciosos e sedentos de poder sobre os outros. Interessou-se por aquilo que o Homem é e não pelo que ele devia ser, pela psicologia da política, pelas paixões que inspiram o comportamento político. Com a abertura da filosofia e a emancipação das paixões das massas, a Humanidade progride materialmente, mas cai no vazio absoluto.
A última fase da modernidade, da crise do Ocidente, aquela em que nos encontramos hoje, é segundo Strauss a era do nihilismo. Vivemos uma crise existencial assustadora, estamos completamente livres para criar os valores segundo os quais pretendemos viver. Cada um por si. A modernidade distancia-se cada vez mais da sociedade clássica. É urgente recuperar a filosofia pré-moderna. Com esse intuito, Strauss criou os seus próprios “discípulos”.
Os neoconservadores foram profundamente influenciados pelo straussianismo, alguns deles directamente. Paul Wolfowitz e Abram Shulsky foram alunos de Strauss e de Allan Bloom, o mais proeminente seguidor straussiano na academia norte-americana.
Para os neoconservadores, é fundamental manter a coesão e estabilidade internas e a guerra perpétua é uma das melhores maneiras de o garantir. A diplomacia é um mero jogo de distracção, já que os inimigos são definidos por antecipação. Defendem, internamente, uma sociedade guiada por princípios morais e aí, bebe-se na religião. Os neocons são a favor da religião no espaço público, mesmo que eles próprios não sejam crentes.
Os neoconservadores escolheram a “capital" do império islâmico, Bagdad (que é também a capital do futuro califado ambicionado por Bin Laden), como o ponto de partida da exportação da democracia norte-americana num mundo pós-11 de Setembro. A doutrina Bush previa que o terrorismo e a hostilidade islâmica face aos EUA e, num âmbito mais alargado, ao Ocidente, seriam combatidas com a mudança dos regimes políticos dos países do Médio Oriente. O Iraque, liderado por um ditador decrépito e com uma longa história com a Casa Branca, era apesar de tudo um país laicizado, perfeito para a repetição da experiência por que passou a Turquia que, na década de 1920, foi sujeita às reformas modernas e ocidentalizantes de Mustafa Kemal Ataturk. Noutras palavras, começar no Iraque, contra o qual tinha havido já uma guerra rápida e bem-sucedida, o “efeito-dominó” – coisa que falhara no Vietname.
Os EUA ignoraram o facto de que a sociedade iraquiana está fracturada ao meio pelas duas tendências político-teológicas, o sunismo (40% no Iraque, largamente maioritário no mundo islâmico) e o xiismo, para além da eternamente massacrada minoria curda. Sunitas e xiitas andam hoje envolvidos numa guerra civil interminável nas ruas iraquianas, que servem hoje também como um dos maiores impulsos da tendência terrorista islâmica.
Os EUA ignoraram que invadir o Iraque, destronar Saddam Hussein e fazer daquele país o maior caos à face da terra era o melhor favor que poderia ser feito ao Irão, grande inimigo do Iraque, que à altura ainda tinha um presidente considerado “moderado”. O Irão é um caso à parte no mundo islâmico, é persa e é maioritariamente xiita, e o seu protagonismo sempre foi contrariado por outros países muçulmanos, sobretudo a Arábia Saudita, sunita e árabe. Com o Irão a assumir o papel de líder no confronto com os EUA e nos discursos anti-Israel, o mundo islâmico encontra-se apaziguado perante a ascendência da Pérsia.
Sobretudo, os EUA ignoraram que, se se acreditar efectivamente no choque de civilizações tal como os neoconservadores acreditam, então fazer uma guerra desastrosa no meio do coração do Islão é a última das soluções.
Com um lunático como o presidente da Coreia do Norte, Kim Il-Jong, à solta, os EUA não têm hoje grande capacidade para fazer valer a sua autoridade nem os seus esforços diplomáticos, aos quais foram dados prioridade na 2ª Administração, com a ascensão de Condoleeza Rice e o afrouxamento da tendência neoconservadora em detrimento da realista.
Conclusão: o “Eixo do Mal”, se não existia antes, existe hoje. E o ar anda por estes dias praticamente irrespirável.
quinta-feira, outubro 12, 2006
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24 anos, velha carcaça.
3 comentários:
Parece-me um texto promissor, mas é muito grande para ler no computador, dá cabo da vista. Vou imprimir e já cá venho...
Às vezes entusiasmo-me ...
Tão complexo quanto ler o principe na integra...mas um tanto menos tendencionista.
Interessante seu espaço.
muita luz.
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